Da incerteza às novas formas de viver: uma análise sobre o novo cotidiano

A crise ainda não revelou todos os impactos que virão a partir deste momento, mas pode ser uma grande oportunidade para marcas fazerem a diferença: aquelas que se mantiverem genuinamente próximas das pessoas, que forem corajosas para responder às necessidades emergentes e que conseguirem se manter ágeis para aprender a cada novo passo nessa jornada sairão com o modelo de negócios fortalecido e, o mais importante, ocuparão uma posição fundamental na vida das pessoas.

31 de dezembro de 2019: a maior parte da população se aglutinava nas praias para pular as sete ondas, tradição super brasileira marcada pela elaboração de planos e resoluções para o ano que se aproxima. Entre os desejos estavam metas para emagrecer, estudar, mudar de emprego, poupar. Parecia um começo como tantos outros, cheio de esperança e expectativas. E então, um vírus surgiu do outro lado do mundo e tudo mudou.

Há grandes chances de você estar lendo este texto da sua casa, assim como segue acompanhando notícias que seriam impensáveis há alguns meses, mantém-se atento à educação online dos filhos, higieniza latas de molho de tomate, faz compras online e muda alguns móveis de lugar.

E mesmo neste momento de reabertura do comércio em diferentes lugares, a impressão é de que lá fora o mundo parou. Porém, dentro de cada casa, nesses mini mundos que habitamos sozinhos ou acompanhados, o movimento não só aumentou como abriu espaço para novos comportamentos que têm tudo para ficar no pós-pandemia. Uma pesquisa feita nos EUA mostra que quase 50% das pessoas dizem que irão manter essas alterações comportamentais mesmo em um mundo pós-COVID.

Diante de tantas variáveis e tamanha complexidade, nosso convite é focar no presente e nas pequenas e grandes mudanças que emergem no cotidiano e que deixam pistas para nos ajudar a imaginar  e até mesmo criar  o que vem adiante.

O ensaio para o novo já começou

Para entendermos o que está em curso e nos prepararmos para o amanhã, elegemos 3 macroforças que ganharam peso neste momento: a incertezaa volatilidade e a mobilidade. Juntas, elas determinam as respostas comportamentais que vêm ganhando tração desde o início da crise e do isolamento social.

Por isso, vamos mergulhar em cada uma dessas macroforças para entender quais evidências elas deixam no presente.

Incertezas e novas formas de viver

Em um momento de tanta imprevisibilidade, atributos como segurança, conforto e familiaridade ganham importância e transformam nossa relação com a saúde, com a casa e com os outros.

Da compra de produtos de limpeza a novos comportamentos ligados a alimentação e atividade física, a incerteza da pandemia fez os brasileiros entrarem em um novo cotidiano, no qual a saúde está menos ligada à estética e mais relacionada ao cuidado e ao bem-estar.

O cuidado com a saúde não se manifesta mais somente pela perspectiva da estética. Agora, o medo do desconhecido e o estado constante de preocupação aumentou os níveis de ansiedade, fazendo com que as pessoas busquem cada vez mais o reequilíbrio mental. Na quarentena, cuidar da mente passou a fazer parte da rotina.

Relação com a casa

Em nome da saúde, ficar em casa se tornou — para muitos — a única saída. Com isso, nossas casas deixaram de ser um refúgio privado para se tornarem um território que conta com alta intensidade de acontecimentos, onde papéis antes desempenhados em outros espaços se sobrepõem diariamente. Na quarentena, o espaço doméstico passou a acumular funções de escritório de trabalho, sala de aula, academia, bar e restaurante.

E à medida que essa relação com a casa se intensifica, cresce o interesse por organizá-la, equipá-la ou mesmo ocupá-la de forma mais prática e inteligente.

Com o tempo, aprendemos a lidar melhor com o espaço da casa, mudamos as rotinas e reorganizamos as tarefas. Mas diante de tantas obrigações e desafios, e a diversão? O esporte, o cinema, os shows, o barzinho com os amigos… Para muitos de nós, a diversão está associada ao mundo externo. Temporariamente, estamos adaptando nossa casa para que ela também seja palco para o entretenimento.

Esses números reforçam o papel do entretenimento como parte de uma tentativa de recuperação da sensação de certa normalidade para a vida. Nessa lógica, pequenos rituais, como preparar uma refeição especial para acompanhar um show ao vivo ou combinar um happy hour online com os amigos, funcionam como eventos que marcam o tempo e diferenciam um dia do outro.

Aos poucos, bares, restaurantes e comércios em geral estão reabrindo de forma intermitente durante a quarentena, mas a socialização seguirá impactada pelo medo de novas ondas de contaminação e pela falta de dinheiro. Por isso, vemos que o prazer em casa deve se estabelecer como um hábito mesmo em uma realidade pós-COVID.

Relação com o outro

A rotina do confinamento também tem desafiado nossas relações. Dentro de casa, a hiperconvivência entre membros da família exige novos pactos de intimidade, como mais paciência, tolerância e criatividade. Já em relação ao mundo exterior, aprendemos a manter vivos os laços afetivos com ajuda das plataformas digitais. Vemos que os hábitos dos quais mais sentimos falta são justamente aqueles que, normalmente, envolvem outras pessoas.

Se antes ela parecia ser vista como uma espécie de vilã no dia a dia nas relações, a tecnologia assumiu o papel de grande aliada durante a quarentena. Com ela, o distanciamento social não se tornou um isolamento emocional.

Volatilidade e as novas prioridades

À medida que os eventos se desenrolam de maneiras completamente aceleradas e inesperadas, fica cada vez mais impossível determinar causa e efeito. Com o impacto da pandemia na economia global e local, os recursos financeiros diminuem, e, com isso, entram em cena novas estratégias de adaptação, como a maior priorização dos gastos, o autodesenvolvimento e o ganho de autonomia.

Priorização dos gastos

Apesar de o mundo inteiro ter sido afetado pelo mesmo vírus, os desdobramentos da pandemia são bastante diferentes em cada região.

Olhando para esses números díspares da realidade brasileira, fatores como preço, proteção à saúde e proximidade de casa se tornaram determinantes na hora das compras, variando conforme a classe social de quem compra. Nesse contexto, classes mais vulneráveis têm menos condição de priorizar a saúde.

Com a aceleração das mudanças externas e a dificuldade de prever o que vem pela frente, as pessoas voltam a olhar para si mesmas e passam a se perceber como indivíduos que, mesmo com vontades próprias, são mais passíveis de se autocontrolar. Assim, passamos a ver o nosso próprio desenvolvimento como um exercício necessário para manter a saúde mental, ou então para nos prepararmos para o cenário pós-pandemia.

Na esteira do autodesenvolvimento, o fenômeno da educação a distância é um exemplo interessante: para muitos, abre possibilidades de renda extra ou maiores chances de empregabilidade no futuro.

Modo “faça você mesmo”

Estamos lidando com um senso de impotência muito grande. Tanto que esse sentimento é o mais comum entre os brasileiros entrevistados em pesquisas realizadas ao longo de abril, maio e junho.

Seja pelo fechamento temporário dos estabelecimentos que prestam serviço, seja pelo aperto no bolso, reassumimos muitas das tarefas que estávamos habituados a terceirizar. Na alimentação, na limpeza da casa, nos pequenos consertos, a regra hoje é aprimorar a autonomia.

E a autonomia também surge em assuntos relacionados à beleza:

Com o objetivo de manter o visual em dia, vemos o interesse por equipamentos e tutoriais que ajudam a garantir melhores resultados:

Com a contínua recomendação para ficar em casa, passamos a achar muito mais difícil estruturar uma rotina de manutenção da aparência. Com isso, vemos surgir uma espécie de “look quarentena”: entra em cena o conforto de moletons, pantufas e pijamas e, em casos mais corajosos, a cabeça raspada nas mulheres.

Mobilidade e novas experiências

Seja fazendo uma transação bancária pelo celular, seja descobrindo um novo app de entrega de alimentos, contamos com a ajuda de soluções digitais para manter a vida funcionando. E, se até o início da crise muitos ainda tinham dúvidas sobre a segurança ou a eficiência desses recursos, nos vimos obrigados a mergulhar nesse universo.

Diante da limitação de mobilidade, experimentar virou regra. Nossas experiências ficaram mais digitais, personalizadas e assistivas.

Com as pessoas cada vez mais cautelosas na hora de tocar em dinheiro ou em teclados, a pandemia está acelerando mudanças de expectativas que saem da experiência online e passam a ser desejadas nas interações offline também. Isso cria uma oportunidade para novos setores fidelizarem clientes.

Ainda é cedo para afirmar se esses hábitos permanecerão de vez, mas é provável que os consumidores continuem valorizando a segurança e abram mão de atividades que apresentem certos riscos à saúde. À medida que as pessoas experimentam e ganham familiaridade com os canais de compra online, elas descobrem os benefícios da personalização e da antecipação de ofertas de produtos e serviços.

O fortalecimento dessas relações cria um território fértil para que as marcas invistam e priorizem ecossistemas e modelos direct-to-consumer (DTC), capazes de fortalecer a lealdade dos clientes por meio da customização e do oferecimento de benefícios exclusivos. E as vantagens continuam mesmo sob o ponto de vista das marcas: ao entenderem melhor o comportamento dos usuários, há mais insumo para testar, aprender e ajustar a jornada oferecida a cada cliente.

É certo até aqui que os consumidores esperam que as marcas adaptem produtos e serviços a eles.

Na tentativa de manter a relevância na vida das pessoas e garantir lealdade e previsibilidade, marcas de bens do consumo lançaram suas plataformas direct to consumer. Um exemplo interessante desse modelo é a plataforma Pantryshop, da Pepsico, que disponibiliza opções de assinatura de produtos divididas em categorias — para café da manhã, kit proteína, hidratação e mais. E a Heinz inaugurou no mercado inglês um modelo semelhante de compra dos seus principais produtos online, além do delivery na porta de casa.

E os exemplos não param por aí: diversas operações DTC foram lançadas durante os meses da quarentena. Aparentemente, a pandemia tirou do papel ou acelerou de vez os planos das empresas que ainda ensaiavam abraçar o modelo de venda direta ao consumidor.

Se antes a capacidade de gerir, acionar dados de transação e ter maior controle sobre oferta e demanda pareciam diferenciais estratégicos nos negócios, hoje eles compõem requisitos básicos para marcas e empresas que querem se manter competitivas.

Assistência ganha força

As limitações de deslocamento e acesso físico impostas pela COVID-19 restringiram a mobilidade das pessoas em suas atividades mais cotidianas, como ir ao supermercado, usar o transporte público, levar os filhos à escola e provar roupas em uma loja. De repente, tudo isso ficou arriscado demais.

No entanto, ao longo dos meses, algumas dessas atividades ganharam emulações digitais que buscam se aproximar ao máximo das experiências antes vividas no mundo offline. Com o apoio dos recursos digitais, vemos surgir novas formas de interação mais imersivas, acessíveis e lúdicas. Dois bons exemplos são o NYX Try it On, onde compradores potenciais são convidados a testar maquiagem virtualmente, e a Dengo Loja ao Vivo, que oferece ao visitante digital um consultor remoto que ajuda a guiá-lo na compra entre uma enorme vitrine de chocolates.

Assim, iniciativas que até pouco tempo atrás eram vistas como inovação se tornaram uma exigência no desafio de manter viva a relação entre pessoas e categorias altamente dependentes da presença física.

É possível mensurar os diversos desdobramentos sobre o futuro pós-COVID?

Com essa premissa, nos desdobramos em diferentes dados e resultados de pesquisa para mostrar as mudanças de comportamento geradas ou aceleradas pelos desafios impostos pela pandemia.

No entanto, não podemos nos esquecer de olhar para o quadro evolutivo da doença no país e as imprevisibilidades que agravam ainda mais esse momento único. É por esse motivo que desenhar previsões sobre um futuro pós-COVID seria um pouco ingênuo da nossa parte.

Mas, ao olharmos para os dados, conseguimos afirmar que nem tudo vai mudar e nem tudo voltará ao que era antes.

A crise ainda não revelou todos os impactos que virão a partir deste momento, mas pode ser uma grande oportunidade para marcas fazerem a diferença: aquelas que se mantiverem genuinamente próximas das pessoas, que forem corajosas para responder às necessidades emergentes e que conseguirem se manter ágeis para aprender a cada novo passo nessa jornada sairão com o modelo de negócios fortalecido e, o mais importante, ocuparão uma posição fundamental na vida das pessoas.

fonte: Marina Pires, Thais Brum Bernardes/Julho de 2020 – Think With Google